1. A Comissão de Direito Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil   Seccional Rio de Janeiro - OAB/RJ, ora expõe os motivos pelos quais   entende que a Exa. Sra. Presidenta da República, Dilma Roussef, deva   vetar o Projeto de Lei que pretende alterar o Código Florestal, aprovado   pelo Congresso Nacional.
  
2. A considerar a importância da matéria no contexto nacional e   internacional, e ainda a considerar o cenário no qual se decide o   destino de ecossistemas, da economia, e da qualidade de vida, qual seja,   a Rio+20, e que o Projeto de Lei foi encaminhado para a Excelentíssima   Senhora Presidenta Dilma Rousseff, que tem a faculdade de sancionar ou   vetar o texto, revela-se imprescindível a celeridade e a máxima   objetividade em nossa manifestação, motivo pelo qual entendemos por   direcionar nossa análise de forma a apontar os temas que se mostram mais   ressaltantes, e que consistem na veia principal das razões de veto,   quais sejam:
-      Desconsideração da variável ambiental.
- Competência: (i) Excesso no exercício da competência para legislar   sobre o tema e (ii) Violação da autonomia dos entes da Federação.
- Conteúdo do Projeto de Lei no contexto do ordenamento jurídico   ambiental vigente: (i) Quebra das garantidas da isonomia, da segurança e   estabilidade nas relações e (ii) Ruptura com o sistema jurídico que   disciplina a matéria ambiental.
3. É de se sublinhar que os itens acima relacionados indicam vícios   contidos no PL, que por sua própria natureza esvaziam o avanço em demais   discussões, sendo extravagante digredir acerca de todos os dispositivos   contidos no PL, o que ocuparia desnecessariamente, a já sobrecarregada   agenda da Presidenta e de sua assessoria.
4. Nessa linha, passamos a apresentar os motivos para um eventual veto.
  
Razões de veto
  
"O Direito do ambiente é constituído por um conjunto de regras   jurídicas relativas à proteção da natureza e à luta contra as poluições. 
[...] nosso ambiente está ameaçado, o Direito deve poder vir em seu   socorro, imaginando sistemas de prevenção ou de reparação adaptados a   uma melhor defesa contra as agressões da sociedade moderna. 
Então o direito do ambiente mais do que a descrição do Direito   existente é um Direito portador de uma mensagem, um Direito do futuro e   da antecipação, graças ao qual o homem e a natureza encontrarão um   relacionamento harmonioso e equilibrado".
Michel Prieur 
Desconsideração da variável ambiental
  
5. É certo que a questão ambiental habita o imaginário e deve pautar   os atos da sociedade civil, assim como os atos da sociedade política, em   todo e quaisquer dos Poderes e entes da Federação. Também é certo que a   promessa constitucional ao direito de propriedade, ao desenvolvimento   econômico, à moradia, ao trabalho, ao direito ao uso dos bens ambientais   não podem ser subtraídos do homem. A Constituição da República   Federativa do Brasil nos orienta a conciliar direito de intervenção no   meio ambiente e dever de proteger os ecossistemas para que as futuras   gerações possam também acessar o meio ambiente, quer seja para o   exercício das atividades econômicas, quer seja para a qualidade de vida.   Para que haja sintonia entre uso e proteção, necessário se faz que o   Estado exerça o controle pelo viés da variável ambiental nos processos   decisórios de políticas de desenvolvimento. No PL do Código 'Florestal',   nos parece que os dis positivos são jejunos de uma análise apropriada   acerca da variável ambiental.
  
6. Percebe-se flagrante deficiência na composição da Comissão Especial   do Congresso que adotou o Substitutivo do Deputado Aldo Rebelo, a   saber: (i) ausência de suporte técnico de equipe multidisciplinar   especializada; (ii) ausência de equilíbrio quantitativo entre ruralistas   e ambientalistas; (iii) ausência da amplitude máxima na oitiva da   sociedade plural. E foi nesta esteira que se desenvolveu o texto   aprovado e encaminhado para a douta Presidenta da República.
  
7. As regras contidas no PL legalizam supressões realizadas e   emprestam indulgência à obrigação de recomposição. Demais disso,   incentivam e autorizam novas supressões de vegetação, não sendo   impróprio concluir que a essência do PL é o deplecionamento dos   ecossistemas contidos nas áreas de Reserva Legal e na Área de   Preservação Permanente.
  
8. Vejamos algumas pretensões do PL do Código 'Florestal' que abarca significativo potencial lesivo:
-      Dispensa de manutenção da Reserva Legal para a pequena propriedade   rural, aquela que tem até 4 (quatro) módulos fiscais, desobrigando a   reposição florestal para as hipóteses em que matéria prima seja   utilizada para consumo próprio. Importa trazer à colação que esta   permissão de uso da área de Reserva Legal, não se volta simplesmente   para o pequeno agricultor, abrange também as grandes propriedades rurais   que foram fatiadas no curso da tramitação do PL, visando ao   aproveitamento deste benefício que aparentemente aproveitará o modesto   homem do campo.       
-      Autoriza a exploração econômica da área de Reserva Legal, mesmo para   propriedades acima de 4 módulos fiscais, através da criação do instituto   uso alternativo do solo  que abre caminhos para o fim da Reserva Legal.   Vale lembrar que para a propriedade rural que tenha mais de 4 módulos   ficais, a exploração fica condicionada à apresentação de Plano de Manejo   Florestal Sustentável - PMFS, mas as supressões para uso alternativo do   solo não estão condicionadas à apresentação de Plano de Manejo.      
-      Alteração do conceito e da finalidade da Reserva Legal. A Reserva   Legal passaria a ter a destinação econômica como finalidade. Atualmente a   destinação é a conservação e o manejo.      
-      Cria a figura Área Rural Consolidada. O PL considera área rural   consolidada, aquela que sofreu intervenção antrópica até 22.07.2008. A   introdução deste conceito oportuniza que as ilegalidades cometidas em   tais áreas possam ser anistiadas, o que se traduz na isenção do   pagamento de multas e da obrigação de recomposição da vegetação na área   da Reserva Legal e Área de Preservação Permanente desmatadas   ilegalmente.      
-      Risco de redução e descaracterização de Área de Preservação   Permanente, em razão da inclusão destes espaços para efeito de contagem   da área da Reserva Legal. A este respeito vale ressaltar que conforme o   Código Florestal vigente, topos de morros, margens de rios, restingas,   manguezais, nascentes, etc são consideradas Área de Preservação   Permanente, recebendo proteção especial em razão dos serviços ambientais   consistentes na manutenção da estabilidade geológica, na preservação   dos recursos hídricos, do solo, da biodiversidade, da flora, da fauna,   da paisagem, e em especial por assegurar o bem estar do homem. Em razão   das características climáticas e geológicas destas áreas que compõem a   APP (áreas com influências hídricas, ou situadas em altitudes mais   elevadas), nela residem fauna e flora consideravelmente distintas   daquelas encontradas nas florestas de Reserva Legal.
 Quanto ao instituto Reserva Legal, o Código Florestal de 1965,   designa a área necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à   conservação e reabilitação dos processos geológicos e ao abrigo e   proteção da fauna e flora nativas, estabelecendo percentual a ser   conservado, em cada região rural do Brasil.
 
9. Importante salientar que o processo legislativo que resultou nas   alterações acima anotadas, se deu de forma solteira de sustentáculo   técnico, ou seja, sem o apoio de equipe técnica multidisciplinar, não se   conhecendo a dimensão dos impactos negativos para o meio ambiente. É   neste aspecto que oferece potencial lesivo e fere o Princípio da   Precaução. 
  
Competência: (i) excesso no exercício da competência para legislar   sobre o tema e (ii) violação da autonomia dos entes da federação
  
10. O Código Florestal de 1965 foi elaborado à luz da Constituição   Federal de 1946, que outorgava competência plena para a União legislar   sobre florestas. Ocorre que atualmente, sob o manto da Constituição   Federal de 1988, outras são as regras de competência, o que significa   dizer que qualquer que seja o Projeto de Lei que a União elabore sobre   florestas, o exercício da competência do Poder Legislativo é limitado,   sendo-lhe autorizado somente legislar sobre as regras gerais   (leis-quadro, que traçam um plano, sem descer aos detalhes). Isto posto,   tendo em vista que o PL do Código 'Florestal' desce aos detalhes,   extrapolando os limites da Carta Magna.
  
11. Demais disso, o PL não observa o regime federativo, ou seja, a   autonomia dos entes da federação, ao anistiar as multas aplicadas pelo   Município ou pelo Estado, no devido exercício do Poder de Polícia, e com   base em Leis Municipais e Estaduais elaboradas no crivo do que a CRFB   permite.
  
12. Pelas razões acima expostas, que demonstram a natureza   absolutamente violadora dos limites da competência, o PL não merece   receber a sanção da Presidência da República.
  
Conteúdo do Projeto de Lei no contexto do ordenamento jurídico   ambiental vigente: (i) quebra das garantidas da isonomia, da segurança e   da estabilidade nas relações e (ii) ruptura com o sistema jurídico que   disciplina a matéria ambiental.
  
13. O Projeto foi estruturado às margens das regras norteadoras do   Direito Ambiental, notadamente apresentando descompasso com a   conservação ambiental  e a reparação dos danos efetivos, com o sistema   da Precaução e os demais princípios de otimização das Leis (regras de   conduta) que disciplinam o meio ambiente. Afronta, de forma infrene, a   segurança jurídica e os acordos internacionais assumidos pelo Brasil, em   especial quanto às ações para o combate às mudanças do clima e proteção   da diversidade biológica. 
  
14. A proposta de anistia prestigia o tratamento desigual, ao guindar o   infrator para um patamar mais vantajoso em relação aos que promoveram a   manutenção e eventual recuperação das Áreas de Preservação Permanente e   Reserva Legal. Esta alteração viria a homenagear a instabilidade nas   relações e excluir a isonomia. A utilização do referencial módulo fiscal   para identificar a pequena propriedade e dispensá-la da obrigação de   manutenção de Reserva Legal traz insegurança face à variação da extensão   da área de Município para Município, ferindo a isonomia.
  
15. E as multas aplicadas com base em Leis municipais e estaduais?   Ressalte-se, por oportuno, que Lei Federal não pode alterar as autuações   realizadas com fundamento em Leis Estaduais ou Municipais. Como serão   tratadas as Ações Judiciais em curso, nas quais sentenças já foram   proferidas, e em fase de execução?  Como fazer com os Termos de Ajustes   de Conduta em fase de execução? Não restam dúvidas de que o PL quebra as   garantias da isonomia, da segurança e da estabilidade nas relações.
  
16. A matéria tratada no PL apresenta pontos de ruptura com o sistema   jurídico que disciplina o meio ambiente. Em relação às regras vigentes   relacionadas à conservação, o PL ofende, dentre outros textos:
-      CRFB, art. 225, § 4º, que trata a Floresta Amazônica brasileira como   patrimônio nacional, condicionando o uso da floresta à observância de   Lei que estabeleça condições que assegurem a preservação dos recursos   naturais.      
-      Lei do SNUC (Lei nº 9.985/2000), que estabelece a conservação de áreas   nas quais se encontrem ecossistemas com atributos especiais.      
-      Convenção da Diversidade Biológica. Resultante da ECO/92, foi   aprovada pelo Congresso Nacional e promulgado pelo Presidente da   República, o que na forma do art. 84, VIII, da CRFB, tem força de Lei   Federal. Referenciado Diploma Internacional, obriga aos signatários (188   países) a conservar a biodiversidade; trata a biodiversidade como algo a   ser conservado e não apenas explorado. Obriga aos signatários que   elaborem, ou mantenham em vigor, a legislação necessária para a proteção   de espécies e populações ameaçadas. Determina a elaboração e   implementação de planos e estratégias de gestão voltadas para a   recuperação e restauração de ecossistemas degradados.
17. Quanto à ruptura com as regras vigentes relacionadas à infração e dano ambiental, o PL ofende, dentre outros textos:
-      CRFB, art. 225, § 3º, que disciplina a responsabilidade administrativa,   civil e penal, para as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente.      
-      Lei nº 6.938/1981, art.14, § 1º, que no âmbito infra-constitucional,   disciplina a responsabilidade civil objetiva para as condutas e   atividades lesivas ao meio ambiente.      
-      Decreto nº 6.514/2008, que no âmbito infra-constitucional, disciplina as   infrações administrativas, estabelecendo as sanções que devem ser   aplicadas ao infrator.
18. O PL ao pretender o perdão dos danos causados ao bioma contido nas   áreas em comento, tenta corromper a promessa constitucional e legal do   meio ambiente equilibrado, a promessa da reparação do dano. Entretanto, é   de se sublinhar que o que deve prevalecer é a interpretação sistemática   das leis e à luz, sempre, da Constituição Federal. Um novo Código   Florestal deve ser interpretado na forma que a Constituição permitir. O   diálogo das fontes deve ser realizado para efeito de se aplicar eventual   novo Código Florestal. Nesse sentido o sistema infraconstitucional nos   oferece regras relacionadas à conservação e à reparação, e a   interpretação de eventual novo Código Florestal deve ser levada a efeito   através do critério sistemático ao ordenamento legal vigente.
  
19. Além das violações aos diplomas supra referenciados, o PL   estrangula os Princípios do Direito Ambiental, conforme a seguir   apontados:
-      Princípio da Participação: A proposta de alteração do Código   Florestal deve passar pelo filtro de amplo debate com a sociedade civil,   e pelo crivo da comunidade científica, a quem compete traduzir para o   legislador, os critérios necessários para que a intervenção do homem   ocorra de forma sustentável.      
-      Princípio da Consideração da Variável Ambiental: O texto da lei   deve propugnar para que a variável ambiental seja considerada no   desenvolvimento econômico e social, preservando-se as características   ambientais que importam utilidade para a sadia qualidade de vida,   evitando-se o deplecionamento dos ecossistemas.       
-      Princípio da Precaução: Estabelece a prudência, o que, d.m.v. não   se verifica no texto aprovado pelo Congresso Nacional. A exploração de   áreas com biomas pouco mapeados e estudados implica na perda de   diversidade biológica.      
-      Princípio da Tolerabilidade: Capacidade do ecossistema suportar as intervenções antrópicas.
Conclusões
  
20. Não nos parece impróprio aventar que eventual promulgação do ato   normativo, se torna temerário, sendo passível de aproximar da presente e   das futuras gerações eventos relacionados, a mudança climática,   assoreamento, e deplecionamento dos ecossistemas, estreitando assim   caminhos para a insustentabilidade e a precárias condições de vida.
  
21. Não obstante o exposto, ainda que o Projeto receba a sanção   presidencial, merece ser salientado que não revoga o ordenamento   jurídico, e como conseqüência, os conflitos advindos da vigência do   diploma em comento, deflagrarão impactos no Poder Judiciário, em razão   da judicialização de tais conflitos. Demais disso, as   inconstitucionalidades serão levadas ao STF, no qual creditamos exarar   entendimento pela inconstitucionalidade. Entretanto até que eventual   inconstitucionalidade seja pronunciada, a máquina administrativa e   judicial restará afogada pelos inúmeros processos, ora requerendo a   aplicação dos privilégios advindos do Código 'Florestal', ora requerendo   sejam levados a efeito as garantias consolidadas no ordenamento legal e   constitucional ambiental. E, s.m.j., não é impróprio assinalar que a   diferença que reside entre o veto total da Presidência da República e o   pronunciamento do STF pela inconstitucionalidade do at o, é que uma das   externalidades negativas da promulgação logrará por imprimir uma ferida   nos cadernos do Rio+20.
  
Rio de Janeiro, 7 de maio de 2012
Vanusa Murta Agrelli
Integrante da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RJ