Ambientalistas e defensores da carnicultura divergem sobre alteração no projeto de lei
"Temos que correr para salvar os apicuns, ainda dá tempo de proteger os manguezais". O alerta foi feito na semana passada por diversas organizações da sociedade civil durante encontro com alunos do ensino médio na Escola Estadual Lia Campos, em Natal. Na ocasião, os ambientalistas demonstraram grande preocupação com a preservação dos manguezais que sofreram um duro golpe com a aprovação, pelo Senado Federal, do texto do projeto de lei que estabelece o novo Código Florestal. O texto aprovado no Senado protege a vegetação dos mangues, mas deixa de fora das áreas de preservação ambiental as regiões de apicuns e salgados que compõem o ecossistema dos manguezais. O projeto será apreciado novamente pela Câmara dos Deputados e deverá seguir para a sanção da presidente Dilma Rousseff.
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Novo texto retirou as regiões de apicuns e salgados,
que compõem o ecossistema dos manguezais, da área
de proteção ambiental. Foto: Fábio Cortez/DN/D.A Press
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Motivos de tanta polêmica na aprovação do Código Florestal, mangue e manguezal, ao contrário do que muita gente pensa, são duas coisas distintas. Conforme o biólogo e ecologista Aristotelino Monteiro, só a vegetação do mangue não é manguezal, apesar de manguezal incluir o mangue. Ele explica que manguezal é um ecossistema e nele se encontra a vegetação do mangue. Enquanto mangue corresponde à vegetação, o manguezal é uma unidade integrada onde as partes representam papéis importantes umas com as outras, envolvendo vegetação, animais, bactérias e toda comunidade biológica, além da parte física como manejo das marés e constituição do solo.
"Não se fala de proteção do mangue, mas proteção de manguezal porque se há a proteção deste, é porque o primeiro também está protegido. Daí o texto do Senado ter cometido um erro imperdoável, à medida que divide o manguezal em parte preservando o mangue, mas condenando à devastação os apicuns que servem de estrutura para dar suporte existencial à vegetação", disse Aristotelino. O manguezal tem sua principal característica no regime entre marés, ou seja na intermitência de marés, no encontro entre a água e o rio formando uma água que nem é salgada nem édoce, mas salobra que fica na zona transicional, onde se encontram os manguezais.
Mobilização
A intenção da ONG SOS Mangue é de que até a apreciação do projeto de lei pela Câmara dos Deputados, o que só deverá ocorrer no início do próximo ano, as organizações civis se mobilizem contra as alterações no Código Florestal. "Pretendemos sensibilizar os deputados e até a presidenta Dilma Rousseff para vetar a proposta que flexibiliza a lei ambiental porque o impacto dessa mudança no código atinge em cheio os estados brasileiros, mas principalmente o Rio Grande do Norte onde essas áreas são pretendidas e devastadas por carcinicultores", declararam representantes das ONGs SOS Mangue, Baobá, Amigos da Natureza, entre outras que estão percorrendo as escolas do estado para conscientizar os estudantes e depois fazer um manifesto contra as mudanças no Código Florestal.
Para o professor Rogério Câmara, representante da SOS Mangue, a votação no Senado foi prejudicial para o meio ambiente, pois o texto que saiu da Câmara Federal incluía as áreas de apicuns e salgados como áreas de proteção permanente, assim como o mangue. Para o professor, a mudança foi um retrocesso às pretensões do Brasil de preservar o meio ambiente. "O Senado deixou essas áreas passíveis à exploração da indústria. A aprovação do PL é uma demonstração clara do quanto esse Código foi feito por interesses puramente econômicos, principalmente no que diz respeito à carcinicultura, quando senadores de estados onde há grande produção de camarão, como o RN e Ceará, investiram pesado nas articulações para derrubar o material que já tinha sido aprovado na Câmara".
Na opinião do representante da ONG Baobá, Haroldo Mota, um dos pontos mais escandalosos do novo código é o fato de não terem ouvido cientistas nem especialistas, deixando notória a falta de qualidade técnica no texto, além de agredir tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. "Não deram ouvidos à Associação Brasileira de Ciência, nem a nenhuma entidade científica. Enquanto o Código de 1965 levou oito anos sendo discutido, bem antes que a ditadura, esse código já foi aprovado no Senado, conseguindo ser pior do que o de 1934, o primeiro a ser elaborado, levando em consideração que antes ninguém sabia nada de ecologia nem da interação entre matas e águas".
Para ambientalistas, carcinicultura é a vilã
Para Francisco Iglesias, representante da Associação Potiguar Amigos da Natureza, o texto aprovado pelo Senado consegue ser mais atrasado do que o de 1965 porque o pressuposto do documento passou a ser puramente econômico por parte da bancada ruralista e dos parlamentares do camarão. Ele explica que a origem de toda essa polêmica foi porque o governo criou, em 2008, por decreto, um programa chamado Mais Ambiente, colocando em prática pela primeira vez, o Código Florestal que nunca ninguém tinha fiscalizado.
"Foi aí que começou o problema, porque o governo iria aplicar a lei e fiscalizar todas as áreas de preservação permanente e multar os transgressores, afetando interesses de ruralistas e carcinicultores. Os ruralistas se revoltaram e resolveram fazer um novo código, usando a justificativa dos pequenos agricultores. Devido ao assunto ser extremamente complexo, a maioria dos deputados nem sabia o que se estava discutindo. Na Câmara, de 530 deputados somente 66 votaram contra".
Para o biólogo Aristotelino Monteiro, a aprovação da lei é um erro contra o meio ambiente, contra a ciência e contra a economia. "O mangue é um bem comum, pertence a todos nós, que em nome de um lucro, utilizam-se e depois de tanto comprometer o meio ambiente o abandonam. Não vale a pena o desenvolvimento a qualquer custo. O que os carcinicultores querem mesmo é ficar numa região onde tem água com a facilidade em abundância sem precisar gastar dinheiro para bombear e a região de manguezal é ótima para isso".
Mudanças devem aumentar produção em 400%, estima ABCC
A produção potiguar de camarão é reconhecida como a segunda maior do país em sistema de viveiros. De acordo com levantamento da Associação Brasileira de Criadores de Camarão (ABCC), o Estado do Rio Grande do Norte contabiliza 362 fazendas de cultivo distribuídas por uma área de 5.402 hectares. A Associação estima que a atividade gere cerca de 40 mil empregos entre diretos e indiretos em solo potiguar. Segundo Orígenes Monte, das 80 mil toneladas de camarão produzidas pelo Brasil no ano de 2010, um total de 30 mil toneladas foram do Rio Grande do Norte, ou seja, em torno de 35% da produção nacional. O número já foi maior, com a produção chegando a cerca de 40 mil toneladas, metade do que é produzido no país. Hoje a atividade tem um faturamento estimado em R$ 450 milhões. O Ceará detém 40% da produção nacional e é considerado maior produtor.
A expectativa dos empresários carcinicultores é de que a com alteração no código o país aumente em mais de 400% a produção. No RN esse número deverá ser ainda mais, contudo, o engenheiro de pescae consultor da ABCC não soube precisar o número. "Essa lei veio para equiparar a produção de camarão e o meio ambiente", declara. Marcelo assegura que o capítulo 4 mostra isso claramente porque trata do desenvolvimento sustentável dos apicuns e salgados, áreas sem perspectiva de vida devido ao alto teor de salinidade.
Mesmo com as mudanças do Código Florestal, o engenheiro de pesca e consultor da ABCC, Marcelo Borba, não acredita que a produção do RN ultrapasse a do vizinho CE. Segundo ele, os produtores cearenses ganharam a primeira colocação porque conseguiram investir mais do que os empresários potiguares devido à facilidade do licenciamento ambiental no estado. Com a aprovação do licenciamento, os produtores do CE puderam pedir concessão de financiamentos para expandir os negócios. "Apesar disso tanto RN quanto Ceará vão crescer mais tranquilos em relação ao meio ambiente", assegura.
Marcelo explica que depois de 41 anos da atividade ser instalada no Brasil, essa é a primeira vez que uma lei federal citaa carcinicultura. O novo código, de acordo com o consultor, não libera o cultivo em 100%, mas para os produtores a área permitida pela lei é mais que suficiente para garantir o desenvolvimento da carcinicultura e preservação do meio ambiente. "As áreas que constam no código são imensas, mas não são utilizadas por nada, não tem vegetação. Além disso, as águas serão devolvidas à natureza enriquecidas", afirma.
Outra mudança trazida pelo novo código é que o licenciamento ambiental na área de carcinicultura atualmente sob a responsabilidade do Ibama passará a ser dos órgãos de proteção ao meio ambiente estaduais. No caso do RN será o Idema. "Isso vai facilitar porque o Idema enxerga o estado com mais clareza. Outras empresas podem pleitear o licenciamento desde que cumpram os limites estabelecidos em lei", diz.
Retrocesso ou avanço no Senado?
Segundo os ambientalistas ouvidos pelo O Poti, o relatório do senador Jorge Viana, que foi aprovado, contrariava parcialmente os interesses do setor do camarão ao definir que a ocupação de apicuns só seria admitida até 22 de julho de 2008, e que dali para a frente os manguezais seriam considerados áreas de proteção permanente (APPs) em toda sua extensão. Mas o trabalho do deputado Henrique Alves (PMDB) e do senador José Agripino (DEM) contribuiu significativamente para a retirada no texto do Senado dos apicuns e salgados da categoria de APP (Área de Proteção Permanente) e para que a aquicultura seja considerada como área de "interesse social", podendo permitir que a carcinicultura continue ocupando áreas alagáveis dos manguezais. Eles lutaram para que a criação de camarão fosse liberada, aprovando uma emenda do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA).
Outro lado
O senador José Agripino orgulha-se de ter aprovado por unanimidade, no Senado Federal, a emenda do novo Código Florestal que retira das Áreas de Proteção Permanente (APP) os apicuns e salgados, porque, segundo ele, em salgado não nasce nada, só serve para fazer evaporação de sal e em apicum também não nasce nada, só dá para fazer tanques e bombear água para camarão. "Em apicum e salgado não nasce nada, não tem vida, não se confunda apicum e salgado com mangue que tem vida, tem vegetação, tem abrigo para caranguejo, peixe", diz o senador.
Aprovada no Senado por unanimidade, a emenda do senador José Agripino garante a ocupação de 35% de uma área não ocupada e preserva 35% que correspondem a áreas de mangues que estão protegidas no código aprovado no Senado. "Essa foi uma solução que contempla os anseios dos carcinicultores sem prejudicar a proteção aos mangues e preservando uma atividade que gera mais de 40 mil empregos numa das áreas mais pobres do Rio Grande do Norte, que são os estuários de rio, onde não nasce absolutamente nada. Por isso, eu me orgulho do texto que defendi e continuo a defender porque os carcinicultores e salineiros vão ocupar uma área que não se produz absolutamente nada.
Ressaltando o grau de salinização e de improdutividade das áreas de apicuns e salgados, ele diz que "a água do mar tem 30 partes de sal por mil, no apicum tem até 150 partes por mil e no salgado o índice é acima de 150. "Os apicuns são áreas onde as marés altas chegam e despejam o sal. Por isso, essas áreas só servem mesmo para criar camarão", disse o senador.
Sobre a questão de o Código ter sido aprovado sem uma ampla discussão da sociedade científica, que tem sido uma das principais críticas das entidades ambientalistas, o senador disse que "o Capítulo do projeto do novo Código foi amplamente discutido com a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, com seus assessores e com juristas de alta categoria, além de produtores de sal e camarão do Rio Grande do Norte. Quem são os assessores da ministra senão ambientalistas?", justifica Agripino.
Como entender o apicum
Os apicuns ora têm água ora não têm porque são banhados em marés de sizígia que são as marés mais altas da preamar. Por isso, é uma zona transicional onde deixa de ter a vegetação do mangue propriamente dito passando a ser uma zona no entorno dessa vegetação do mangue, mas pertencente ao ecossistema manguezal. "Olhando do ponto de vista da estética dá para se ver uma diferença visual, entre a vegetação arbórea do mangue e uma planície com alguma vegetação herbácea que aparentemente se olha e diz que é um areal sem muita importância", explica Aristotelino.
Quando se tem uma maré muito alta, ela vai além do mangue e penetra inundando essa área de apicum, levando uma série de sedimentos e nutrientes para essa região, o que se entende que é um depositório de nutrientes nesse período. Quando baixa muito aquela zona fica seca e é muito comum se ter organismos do mangue que vão para essa área inundada. Os caranguejos, por exemplo, vão para essas áreas e fazem buracos, às vezes até de um metro que são verdadeiros canais ali dentro.
"Assim, os apicuns funcionam como uma espécie de reserva nutricional para o mangue, abrigo para animais e organismos, além de refúgio para moluscos e até para aves quando os mangues estão inundados. "Se retira o apicum, compromete-se a reserva de nutrientes e o abrigo dos animais, além de perder uma zona importante de amortecimento que normalmente a natureza precisa", explica Aristotelino.
Outro ponto importante, segundo Aristotelino é o cenário de mudanças globais que tem mostrado uma perspectiva de aumento de temperatura e de problemas relativos à mudança do nível do mar. Para esse problema, a Organização das Nações Unidas já considerou os apicuns como uma zona que o mangue vai poder também migrar com o aumento do nível do mar. "Em cenário de mudança global esse mangue também vai se refugiar nos apicuns", diz ele.
Para Aristotelino, não há como proteger o mangue sem proteger os apicuns. "O que se discute agora não é qual a importância do mangue, mas qual a importância do apicum para o mangue, porque se entendermos que o mangue precisa ser protegido, temos que entender que temos que proteger aquilo que dá proteção ao mangue, que são as áreas de apicuns".
Francisco Francerle
Diário de Natal